Amélia Tiganus: “O lobby cafetão reagirá com força se tocarmos no negócio virtual global de prostituição”

Feminismo Com Classe
14 min readSep 26, 2020

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Autora: Graciela Atencio
Original: GeoViolênciaSexual.com
Data de publicação: 25 de setembro de 2020
Tradução: Aline Rossi — Feminismo Com Classe

Se cada encontro casual é um acontecimento e na vida, mais cedo ou mais tarde, enfrentamos o que é inevitável, dia 12 de Novembro de 2015 foi o primeiro dia de ativismo político de Amelia Tiganus.

Participei no III Encontro Internacional sobre Fundamentalismos e Direitos Sexuais e Reprodutivos organizado pela Medicus Mundi Gipuzkoa e pelo Movimento Manuela Ramos, em Donostia-San Sebastián, com uma apresentação sobre o feminicídio.

Na altura da discussão com os participantes, uma jovem mulher levantou-se do seu lugar em frente a uma audiência de cerca de 200 pessoas e disse que tinha deixado a prostituição no País Basco há oito anos e não tinha encontrado espaços públicos ou institucionais onde a prostituição fosse discutida como uma forma de violência masculina. Ela estava cansada de ouvir a resposta, quando pedia ajuda ou informações: “Conhece a perspectiva do trabalho sexual?

No dia seguinte, encontramo-nos num café para uma entrevista. A verdade é que essa entrevista nunca foi publicada. Não fiquei impressionada com a sua história, mas sim pela forma como a contou. Eu estava diante de uma sobrevivente da prostituição que tinha decidido ressignificar o que ela tinha vivido como um ato político expansivo.

Desde então, Amelia Tiganus, nascida na Romênia há 36 anos, não deixou de dar palestras, apresentações, cursos e oficinas por toda a Espanha. Hoje, ela é uma das referências mais importantes para o abolicionismo no país. Uma mulher brilhante, profunda e corajosa, que é clara quanto ao rumo que está a tomar.

Já passaram cinco anos desde que nos conhecemos. Como vê a revolta das prostitutas hoje em dia?

AT: Essa ideia amadureceu não só do ponto de vista emocional, mas também do ponto de vista intelectual-estratégico. Continuo nessa busca que não se trata apenas de uma ideia em poucas cabeças ou num pedaço de papel.

Está perto de se tornar uma verdadeira revolta global das mulheres contra essa forma de violência patriarcal, especialmente porque penso que muitas pessoas, incluindo o movimento de mulheres, finalmente perceberam a importância das vozes das sobreviventes. Não como algo que caiu do céu, mas como a necessidade de trabalhar com sobreviventes para que possam colocar a sua própria história num contexto político, para que possam adquirir conhecimentos, argumentos e para que estejam melhor protegidas não só da crítica pessoal, mas também da defesa daquilo que nem sequer sabiam que existia.

A maioria de nós não pensou que houvesse outra verdade devido a essa impossibilidade de nos vermos fora do nosso próprio contexto. Assim, a participação ativa de pessoas empenhadas, sejam elas do movimento feminista ou não, é essencial para nos acompanhar.

O que quero dizer é que considero injusto que se espere algum tipo de heroísmo das sobreviventes, que elas se tornem cabeças visíveis sem apoio social.

Sobreviventes e não sobreviventes têm de andar de mãos dadas nessa luta horizontal, porque a prostituição é uma instituição que afeta toda a sociedade.

Também vejo que as pessoas precisam de uma figura heróica que surja do nada e resolva tudo. Mas não é assim que funciona.

Se tivesse de fazer uma avaliação do seu ativismo ao longo dos anos, o que destacaria mais?

AT: O mais valioso foi remover o estigma, tanto o exterior como o interior, porque o estigma é algo que não vem apenas do exterior; também se manifesta de dentro para fora, temo-lo muito interiorizado.

Penso que tudo isto ajudou outras sobreviventes a aproximarem-se desta revolta das prostitutas, observando as dinâmicas que tiveram lugar entre o que representei ao longo destes quatro anos e as reações da sociedade, do movimento feminista, dos media… A minha experiência pode ser um teste de como uma possível sobrevivente será tratada se ela decidir apresentar-se amanhã.

É crucial que tais espaços empáticos e respeitosos existam para abordar o envolvimento das e dos sobreviventes. O meu processo pessoal tem sido de conhecimento, autoconhecimento, autoaperfeiçoamento. Continuo a fazê-lo e continuarei a fazê-lo durante toda a minha vida. A flexibilidade e assertividade têm sido fundamentais neste processo pessoal de revolta das prostitutas.

“Mulheres que defendem a prostituição podem acreditar na igualdade entre homens e mulheres, mas não acreditam na igualdade entre as próprias mulheres como sujeitos da luta feminista.” — Foto: Carlos Rosillo

Levando em conta que no patriarcado todas as mulheres são prostituíveis, já se deparou com esse tipo de misoginia que muitas mulheres prostituídas sofrem e que chamam de “putafobia”?

AT: Identifiquei mais putafobia nas mulheres que dizem defender a prostituição, porque esse medo, sabendo que são prostituíveis, esse medo de serem deixadas em lugares abertos e que há uma maior probabilidade de acabarem por lá, faz com que elas tomem como certo que [há mulheres que] têm de lá estar. E esse discurso está também presente nas mulheres progressistas, feministas, mas que têm essa dicotomia entre uma e outra que está muito enraizada e, por isso, querem diferenciar-se do lugar da prostituta.

Então pensa que as mulheres que defendem a prostituição como um direito não acreditam na igualdade?

AT: Claro que não! Quando falamos de feminismo não estamos falando só de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, mas de igualdade entre as próprias mulheres. Daí a importância de lutar não só contra o patriarcado, mas também contra o capitalismo, porque se eu me libertar e me capacitar, mas contratar uma mulher sul-americana para cuidar dos meus filhos enquanto ela deixa os seus no seu país, de que tipo de igualdade ou de emancipação estamos a falar entre nós? Assim, podem acreditar na igualdade entre homens e mulheres, mas não acreditam na igualdade entre as próprias mulheres como sujeitos da luta feminista e é aí que reside o problema.

E depois há a merda da putafobia dentro da chamada anti-prostituição. Há mulheres que têm medo que os seus maridos saiam com prostitutas e evocam esse ódio às mulheres prostituídas e à própria prostituição, mas sem fazer uma análise do sistema de prostituição, nem da masculinidade hegemônica, nem do patriarcado…

De fato, há um discurso racista e xenófobo sobre as mulheres não só como prostitutas mas também como mulheres migrantes “que vêm aqui para levar os maridos das mulheres espanholas”. Contudo, acredito que uma vez articulado um discurso abolicionista que se afaste do proibicionista, a putafobia pode desaparecer.

Onde vejo mais putafobia é na comparação da violação em grupo de Sanfermines com a escravidão sexual de uma mulher prostituta. Digo sempre que uma jovem mulher de Madrid violada por cinco homens tem de nos afetar da mesma maneira que uma mulher romena ou colombiana violada na prostituição — anteriormente pagas — num bordel ou num apartamento. Já ouvi muitas vezes: “não compares, é muito pior uma violação como a de La Manada porque aquelas que estão na prostituição consentem”. Existe uma putafobia social, essa diferenciação entre as que valem a pena e as que não valem.

Para as vítimas de agressões sexuais múltiplas, as ruas são preenchidas com a as palavras de ordem: “Mexeu com uma, mexeu com todas”, mas ainda se normaliza que a prostituição é um lugar onde umas têm de estar, outras têm de estar. Como o Barcelona en Común declarou publicamente que, no contexto da pandemia do coronavírus, defendem o trabalho sexual porque as migrantes só podem ganhar dinheiro com a prostituição. O pensamento político por detrás deste disparate é: “sou tão gente boa que até deixo essas mulheres ganharem a vida com isso”. É o auge do discurso político colonial.

Claro, e além disso, essa coisa de “ai que pessoa boa eu sou, tenho empatia com elas”. Não, isso não é empatia, é misoginia e “você continue aí, continue com a sua vida o melhor que puder”.

Eu tenho a percepção de que a teoria abolicionista ainda está longe das sobreviventes. No movimento feminista, precisamos nos envolver mais com as mulheres prostituídas. O que você acha?

AT: Penso que, especialmente na Europa, no Ocidente, o movimento feminista está muito concentrado na questão intelectual e no que emerge da academia. O problema é que ele atinge apenas algumas mulheres, que podem ser de diferentes classes sociais, é claro, mas é um conhecimento denso que ainda não está traduzido em uma linguagem mais coloquial.

Digo isto porque há muitas pessoas, especialmente meninas adolescentes, cujo dia-a-dia é tão difícil que elas não conseguem ler filosofia ou livros com uma linguagem acadêmica. Muitas vezes me dizem: “é que quando você fala, eu entendo”. Portanto, isto é problemático porque as mulheres que geram todo esse conhecimento precisam estudar e analisar muito, para criar esse pensamento pelo qual somos gratas porque é muito importante teorizar e conceituar, mas então é necessário trabalhar para tornar esse conhecimento popular.

Percebi isso quando estive na Argentina: lá, as mulheres abolicionistas acadêmicas geram um pensamento teórico-conceitual, mas também articulam uma ponte entre a sociedade e a academia. Ali, as ativistas sabem como transformar essa linguagem em uma linguagem popular, acessível à todas, para que possam ter argumentos.

O paradigma racional não é suficiente?

AT: Não. O paradigma racional não é suficiente nos tempos do capitalismo neoliberal…

Voltando à pergunta que você me fez antes, eu não poderia culpar as teóricas por não estarem nos bordéis, por não falar com as prostitutas ou mesmo por poder sentar-se para comer com uma prostituta, o que eu recomendo altamente. Todos fariam bem em nos ouvir, em refletir sobre essa forma de escravidão, porque acho que temos uma espécie de classismo internalizado, em geral, o que nos faz aspirar a nos identificarmos mais com o que dizem as acadêmicas. E digo isto na primeira pessoa porque também caí nessa dinâmica no início da minha luta contra o estigma.

É verdade que, quando comecei, foi muito útil absorver todo o conhecimento acadêmico a fim de resistir e ter argumentos. Mas, por outro lado, eu estava me distanciando do lugar onde eu seria mais útil, no sentido do lugar onde eu poderia gerar mudanças reais, que era nas ruas, nos bairros, nas escolas, falando de transformação popular. E, de fato, tive a sorte de ter mulheres autênticas que me fizeram ver que meu valor não estava em difundir o conhecimento teórico como tal, mas em transformar a experiência e a teoria em conhecimento e inteligência social.

Mas este é um trabalho que temos que fazer juntas e não deixá-lo nas mãos apenas de sobreviventes ou apenas de acadêmicas. Nós, ativistas, temos que encontrar uma maneira de encontrar sinergias entre acadêmicas e sobreviventes.

Uma das coisas que mais me incomodaram quando você começou a dar palestras e palestras — isso aconteceu várias vezes — é que eles não queriam lhe pagar o mesmo que o resto dos oradores. Ou não a perguntavam como queria ser apresentada nem pediam seu currículo.

AT: Lembro-me perfeitamente disso. Não é que eu viva de passado, mas também os últimos desentendimentos que tive com alguns de meus colegas têm a ver com isso. O movimento abolicionista está disposto a fazer com que as sobreviventes se apresentem, dêem seu testemunho, mas às vezes parece que eles nos apoiam contanto que esteja dentro dos limites. Por exemplo, às vezes me senti rejeitada quando eu não só contava meu testemunho, mas também trabalhava nele e analisava e conceitualizava o sistema de prostituição. Lá encontrei resistência porque dentro do movimento abolicionista também há preconceitos e há pessoas que pensam que alguns especialistas deveriam analisar o testemunho dado pelas pessoas sobreviventes. E o que essas pessoas não compreendem é que as próprias sobreviventes precisam colocar em palavras o que elas próprias experimentaram além de si mesmas e de uma forma mais ampla, e isto é exatamente o que nos cura.

Não podemos contar nossa história em abstrato porque isso pode até nos traumatizar novamente. Contar nossa própria história nos humaniza.

O fato de nós sobreviventes não termos sido capazes de ocupar esse lugar até agora tem a ver com o estigma que sofremos, mas também com o racismo, o classismo, o colonialismo… e temos que rever tudo isso quando se trata de como nos relacionamos com pessoas sobreviventes.

Pouco se fala no movimento abolicionista sobre como o sistema de prostituição espanhol está sendo penetrado pelo racismo.

AT: Sim. E, por exemplo, na Catalunha e no País Basco negam ainda mais que sejam racistas. Há uma hipocrisia absoluta porque eles usam o bom senso do “não, somos como família” quando se referem às mulheres que trabalham como estagiárias ou “eu tenho uma amiga prostituta”. E isso é o mesmo racismo internalizado, enquanto dizem que são sociedades avançadas em igualdade, mas escondem em que base essa suposta emancipação das mulheres indígenas foi construída.

Parece que existe um pacto social silencioso para que as prostitutas possam ter certas práticas sexuais impiedosas com “os outros”.

O próprio racismo significa que, na mente da maioria, as mulheres migrantes são vistas como sexualizadas e erotizadas. Elas são as “exóticas”, como também explicam Beatriz Ranea e Rosa Cobo. Esta diferenciação alimenta claramente o pacto social implícito que existe e posso falar a partir da minha realidade aqui no País Basco: os homens têm a permissão e aprovação não só da sociedade como um todo, mas também de suas próprias famílias. Uma vez por semana eles têm permissão para se encontrar com seus pares em suas “kuadrillas” (com K mesmo) masculinas, ir jantar e fechar a noite no bordel.

E você sabe se essa prática está presente em outras partes da Espanha?

AT: Não sei se isto está especialmente ligado ao conceito da “kuadrilla”. Conheço muitas histórias de filhos e filhas de prostitutas que se lembram de sua mãe ir ao bordel no fim de semana para receber o pagamento do pai antes que ele gastasse todo o dinheiro no bordel. Agora, é verdade que a masculinidade patriarcal é fortemente questionada e a maioria dos homens aqui não são — aparentemente — resistentes à mudança, mas ajustam seu discurso ao politicamente correto de manter o privilégio de consumir prostituição. Vi que nos países do Leste Europeu ou da América Latina os homens resistem abertamente e se fecham nesse papel tradicional de machão, mas aqui se escondem para preservar esse privilégio.

Talvez as mulheres de hoje não aceitem ter um relacionamento com um comprador de prostituição, mas isso não significa que os homens tenham deixado de ir às prostitutas. E menos ainda em um momento em que a indústria do sexo usa estratégias de marketing que tornou o sexo impulsivo e instantâneo, e encoraja o excesso de excitação dos homens para canalizá-lo para a prostituição como lazer e entretenimento.

Deve-se ter em mente que muitos dos prostituidores levam vidas duplas. Eles costumavam fazê-lo abertamente porque podiam, por causa do seu entorno, por causa do momento histórico. Mas agora, como a prostituição está se mudando para apartamentos clandestinos, os prostituidores estão mantendo melhor a confidencialidade e a discrição. Tudo isso continua e está em ascensão segundo os estudos, não sou eu quem digo.

Você acha que os prostituidores de hoje sabem que o que eles fazem é muito prejudicial?

AT: Sim, e se eles sabem, é precisamente por causa dos avanços que o feminismo tem feito. Fizemos progressos, mas ao mesmo tempo essas pontas soltas que inevitavelmente permanecem nos fizeram negligenciar a maneira como os homens se relacionam sexualmente com as mulheres e não apenas isso, porque o que vejo é que o discurso feminista, tão necessário, muitas vezes está focado em apontar o negativo e temos que construir a história e a alternativa positiva, ou seja, não podemos dizer o tempo todo “isto é errado, isto é errado, isto é errado” sem criar alternativas.

Essas alternativas são criadas a partir de discursos desse mal chamado ‘feminismo neoliberal’ e é por isso que ele é tão atraente e por que tantas caem nessa decepção individualista e neoliberal: “é o meu corpo e faço com ele o que bem entender”. Temos que ser capazes de dar a volta a tudo isso e construir de forma positiva também.

A construção a partir do drama me esgota, me deixa sem desejo, sem paixão. Temos que tentar construir a partir do positivo, sem negar o drama, a fim de alcançar aquele ponto em que a convivência com os homens é igualitária, respeitosa e amorosa.

Você acha que existem diferenças importantes entre sociedades relativamente ao lugar da puta? Você vê, por exemplo, diferenças entre a Romênia e a Espanha ou países latino-americanos?

AT: Acho que existem diferenças importantes. Na sociedade romena, onde as crenças e o forte poder que a Igreja tem dentro do próprio aparelho estatal significam que a visão da prostituta ainda está no mesmo lugar que estava há cinqüenta anos, nos dias de Franco, por exemplo.

Na Espanha, através do discurso capitalista patriarcal, a prostituição nos é vendida como algo transgressivo, como a mulher superior que usa seu poder, que domina com seu sexo… Isso mudou aqui e essa mensagem é mais perigosa porque é abertamente dirigida às adolescentes, que são a nova mercadoria, o “produto” que está sendo fabricado.

E como as cadeias físicas já são rejeitadas por uma sociedade de bem-estar, essas cadeias psicológicas são tecidas e essa subjetividade é transformada na subjetividade da “puta”, da “é nisso que eu sou boa e é isso o que eu sei fazer”. E é aí que devemos entender o que dizem nossas colegas argentinas: “eles vêm atrás das nossas filhas”. Mas eles não vêm com correntes e uma van branca, eles vêm através do Instagram, TikTok e propaganda pornográfica, a mídia, a publicidade…

Estamos perto ou longe do abolicionismo na Espanha?

AT: Por um lado, estamos relativamente próximas porque nos últimos dois ou três anos o movimento abolicionista se expandiu muito e chegou a muitas pessoas. Estamos mais organizadas e concentradas e creio que é possível que alcancemos medidas destinadas a abolir a prostituição. Gostaria de pensar que essa medida é a Lei do Sistema de Prostituição Abolicionista que estamos pedindo, embora duvide que seja alcançada como tal.

Em todo caso, devemos aspirar a isso e continuar a exigi-lo porque sabemos que os remendos não resolvem nada e, sobretudo, dão origem ao discurso oposto. Ou seja, se tomarmos certas medidas abolicionistas, mas que não fazem parte de uma lei abolicionista abrangente, o fracasso é certo e, portanto, as críticas ao modelo abolicionista virão e aqueles que se opõem à abolição usarão esse fracasso gerado por esses remendos contra o próprio modelo abolicionista. Portanto, temos que aspirar a torná-la uma lei abrangente. Com muito esforço e compromisso por parte de nossos representantes políticos, isso pode ser alcançado.

Por outro lado, nesse momento de crise econômica, cultural e de identidade, a sociedade precisa continuamente do esforço dos militantes e ativistas que integram em sua luta o porquê desta lei e sua importância. Não podemos depositar tudo numa lei. Temos que ganhar o apoio e o envolvimento de diferentes setores da sociedade civil.

No que diz respeito aos representantes políticos, acho que devemos deixar claro que o movimento feminista e, portanto, o movimento abolicionista, é um movimento da sociedade civil que pertence à sociedade civil. O grande problema é que os partidos políticos fizeram dessa luta uma bandeira e o que os partidos políticos têm que fazer não é chamarem-se abolicionistas ou feministas, mas atender às exigências da sociedade. O movimento feminista está à frente dos partidos políticos para fazer exigências e os partidos políticos têm que cumprir.

Você acha que o movimento feminista e abolicionista deve permanecer independente do poder?

AT: Sem dúvida, porque somos nós que representamos o povo. Não podemos andar de mãos dadas. Não é um convite à guerra, mas temos que ser claras sobre nosso lugar para que isto não se torne uma instrumentalização pelos partidos políticos.

Portanto, não é útil para nós termos partidos políticos que se dizem abolicionistas ou feministas no discurso, o que queremos é que eles mostrem que cumprem com as exigências que recebem do movimento feminista. Somente então ficará claro para nós que somos reconhecidas como interlocutoras válidas e que eles obedecerão ao que estamos pedindo.

O que você acha das medidas anunciadas há alguns dias pelo Ministério da Igualdade sobre a penalização de todas as formas de proxenetismo?

AT: É uma boa notícia que uma demanda do movimento feminista, que luta há mais de 20 anos para fechar prostíbulos, está sendo atendida e que medidas estão sendo tomadas para prevenir, proteger e compensar as vítimas da prostituição. Mas atenção: essas medidas são incompletas e tardias.

Estou particularmente preocupada que o proxenetismo em várias formas esteja sendo negligenciado quando se trata de definir o proxenetismo 2.0. Agora, quase toda exploração sexual ocorre através de aplicações e websites dedicados. Esperamos que não sejam necessários mais 25 anos para conseguir uma lei abolicionista.

Talvez o lobby dos cafetões não se importe de fechar bordéis agora, é a crônica de uma morte anunciada devido à pandemia, digitalização… mas reagirá fortemente se tentarmos tocar o negócio virtual global. Não podemos estar sempre um passo atrás do lobby cafetão porque o custo é pago por milhões de vítimas.

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