Marian Hatcher sobre o projeto antitráfico SESTA-FOSTA (EUA)

“A venda de seres humanos é uma prática exploradora, indesejada, violenta e inaceitável que deve ser abolida.”

Feminismo Com Classe
10 min readJul 25, 2019

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Marian Hatcher é sobrevivente da prostituição e do tráfico sexual, Gerente Sênior de Projetos e Coordenadora de Tráfico Humano da Delegacia do Condado de Cook, ganhadora do Prêmio Shared Hope International Pathbreaker 2014 e do Prêmio Presidencial Lifetime Achievement 2016.

O novo projeto de lei antitráfico nos Estados Unidos recebeu muita má imprensa na mídia, bem como em lobistas do trabalho sexual e organizações de liberdades civis. Meghan Murphy conversou com Marian Hatcher, uma sobrevivente que se tornou ativista, para obter a história real.

Entrevista publica em Abril de 2018, no Feminist Current
Tradução: www.facebook.com/feminismocomclasse
Instagram: www.instagram.com/blog.feminismocomclasse

Marian Hatcher

Em Fevereiro de 2018, o Congresso (EUA)aprovou uma nova lei anti-tráfico: a Lei de Combate ao Tráfico Sexual Online (FOSTA) e a Lei Contra a Facilitação de Traficantes Sexuais (SESTA), que permitirá às vítimas, procuradores e defensores públicos do país responsabilizarem os provedores de internet por facilitar a prostituição e o tráfico sexual.

O projeto foi apoiado por organizações anti-tráfico que se envolveram em uma longa luta com sites como o Backpage.com, que lucraram enormemente com a exploração de mulheres e meninas, vendidas conscientemente no site por meio de "anúncios de sexo".

As tentativas anteriores para responsabilizar a Backpage falharam, quando litigantes, organizações de liberdades civis e grupos de direitos digitais como a American Civil Liberties Union e a Electronic Frontier Foundation argumentaram que o Backpage é protegida pela Seção 230 da Lei de Decência da Comunicação, que diz que provedores de sites da internet não devem ser responsabilizados pela informação que os usuários publicam em seu site. Em outras palavras, se uma criança for vendida no Backpage.com, a empresa, apesar de hospedar e lucrar conscientemente com esse anúncio, não é considerada responsável.

A fim de aprender mais sobre a SESTA-FOSTA, a luta para responsabilizar traficantes e sites como Craigslist e Backpage ​pelos seus papeis na exploração sexual, e os mitos atualmente sendo perpetuados por lobistas do trabalho sexual, organizações de liberdades civis e pela mídia sobre a nova lei, falei com Marian Hatcher, que é Gerente Sênior de Projetos e Coordenadora de Tráfico Humano da Delegacia do Condado de Cook, bem como ela própria uma sobrevivente do tráfico sexual.

Marian foi destaque no documentário da Rede Oprah Winfrey, Prostituição: Deixando a Vida; o documentário ganhador do Emmy do Centro-Oeste, INK 180; a série Shared Hope International Gang Trap; “Um Caminho Aparece”, de Nick Kristoff; e, mais recentemente, “Eu sou Jane Doe”* [N.T: “Jane Doe” é uma expressão popular para se referir às prostitutas].

Ela foi a ganhadora do Prêmio Shared Hope International Pathbreaker 2014, concedido a indivíduos que se dedicaram a enfrentar a demanda que impulsiona o tráfico sexual de menores de idade. Em 2016, ela foi premiada com o Prêmio Presidencial Lifetime Achievement 2016 por Serviços Voluntários, do Presidente Obama, e em 2018, o senador Richard Durbin honrou Marian no registro do Congresso em seu discurso no mês da História Negra.

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Meghan Murphy: Conte-me um pouco sobre sua experiência na questão do tráfico sexual e seu interesse nesta lei.

Marian Hatcher: Eu me formei na Loyola University em 1985 com um diploma em finanças, e depois trabalhei para três grandes corporações – no meu último cargo, eu tinha uma equipe de 25 pessoas. Eventualmente, me tornei vítima de violência doméstica (que é uma parte comum da história de muitas sobreviventes de prostituição), e fugi do meu agressor, anestesiando a dor com drogas e acabando na rua. A sobrevivência básica e alimentar a dependência química (um hábito agora totalmente superado) me fez dependente da prostituição, em seguida, acabando com um cafetão que me traficou. Felizmente, isso me levou para a cadeia. Costumo dizer que fui resgatada por anjos com algemas, nunca esperava que os serviços de saída fossem oferecidos em um ambiente correcional. Mas me ofereceram tratamento para abuso de substâncias e tratamento mental, gerenciamento intensivo de caso e apoio de colegas que me permitiram curar e seguir em frente com minha vida. Em 22 de dezembro, o governador Bruce Rauner me concedeu a Clemência Executiva, limpando meu histórico criminal.

Nos últimos 14 anos, o meu papel no Gabinete do Xerife evoluiu para a coordenação da programação relacionada com a prostituição e o tráfico sexual, bem como com o apoio técnico político e legislativo. Eu participo de vários conselhos e facilitei treinamentos sobre tráfico e prostituição para vários grupos de aplicação da lei, incluindo o FBI e o Departamento de Segurança Interna dos EUA.

Tom Dart, o xerife do condado de Cook, Illinois, tem lutado contra a promoção online de prostituição e tráfico sexual desde 2009, depois de processar a Craigslist para que removesse a sua seção de "Serviços Eróticos", além de fazer esforços adicionais contra empresas similares. Seus esforços contra essas empresas foram prejudicados pela Lei de Decência nas Comunicações de 1996, que agora será alterada no âmbito do SESTA-FOSTA, a fim de permitir que vítimas de tráfico sexual responsabilizem empresas on-line.

Esta legislação, apoiada pelo xerife Dart, é a primeira vitória, proporcionando um caminho para a justiça para aqueles que foram e são explorados online.

MM: Você pode explicar o que esta lei [a Lei de Combate ao Tráfico Sexual de 2017 (FOSTA) e a Lei Contra a Facilitação de Traficantes Sexuais de 2017 (SESTA)] farão (ou o que elas pretendem fazer)?

MH: O projeto de lei da congressista Ann Wagner, H. R. 1865 (FOSTA), passou com 388 (votos) a 25, no dia 28 de fevereiro. O projeto foi considerado com uma emenda da congressista Mimi Walters que restaurou as provisões centradas na vítima (que havia sido removida em dezembro), alterando a seção 230 da Lei de Decência da Comunicação (CDA 230) para permitir que as vítimas ajuízem ações civis nos tribunais estaduais. A emenda oferecida pela deputada Mimi Walters acrescentou na linguagem de S. 1693 (SESTA), fazendo as mudanças críticas ao CDA 230 pelas quais estávamos lutando. Sem a emenda de Walters, as mudanças no CDA não teriam sido incluídas, uma vez que essas disposições foram removidas do FOSTA pelo Comitê Judiciário da Câmara. FOSTA foi para o Senado para consideração e foi aprovada sem emenda, com 97 votos contra 2, em 21 de março. Juntos, o pacote bipartidário [agora] esclarece que a Seção 230 do CDA não impede que estados e vítimas de tráfico sexual persigam justiça contra os mercados modernos de escravos nos Estados Unidos. Também altera a Lei Mann [que tornou crime o envolvimento com o transporte comercial interestadual ou estrangeiro de qualquer mulher ou menina com fins de prostituição] para permitir o processamento de sites que promovem a prostituição.

Em suma, é uma lei com duas partes. A SESTA altera o CDA para que os estados possam usar as leis de tráfico para acusar operadores de sites nos tribunais estaduais e dar aos sobreviventes um curso civil direto, federalmente, contra sites que facilitaram sua vitimização. O FOSTA inclui a alteração do CDA (adicionando novamente a linguagem ao SESTA), mas principalmente cria novas penalidades criminais para os operadores de sites, para serem usados ​​pelas federações ou pelos estados, através da expansão da Lei Mann. O recurso civil aos sobreviventes só pode ser solicitado se a acusação for bem sucedida.

MM: Que papel e responsabilidade os sites podem ter na facilitação da exploração sexual / tráfico / prostituição?

MH: Existem centenas de sites que permitem a publicação de anúncios (às vezes até ajudam no conteúdo do anúncio) que vendem crianças e (principalmente) adultos vulneráveis ​​e marginalizados para o sexo.

MM: Muitos lobistas do trabalho sexual estão criticando a SESTA-FOSTA alegando que o projeto prejudica os “profissionais do sexo” impedindo-os de fazer triagem de clientes, “negociar condições seguras de trabalho” e formar comunidades on-line. Alguns também argumentaram que o SESTA-FOSTA “dificultará as investigações sobre o tráfico ao fechar os anúncios on-line, que funcionam como recursos úteis para a aplicação da lei na identificação de vítimas”. Como você responde a esses argumentos?

MH: A triagem de compradores sexuais potencialmente violentos e a garantia de lugares seguros não existem na prostituição. Nosso principal objetivo deve ser acabar com a exploração e evitar o dano inerente àqueles que estão no comércio sexual. Embora possa haver algumas pessoas que são prostituídas por opção, para a vasta maioria é a falta de escolhas que as leva ao comércio sexual – um comércio violento, seja em ambientes fechados ou ao ar livre. Não podemos priorizar essa "escolha" sobre a exploração de pessoas vulneráveis.

Este mercado ilegal requer visibilidade para funcionar. Enquanto um pequeno pedaço do mercado de compra de sexo pode ir para a deep weeb, o mercado on-line tem que ser acessível aos compradores. Não pode prosperar se for profundamente underground, onde as pessoas não possam encontrá-lo.

MM: Muitos liberais/organizações de liberdade civil/grupos de direitos digitais estão dizendo que o projeto põe em risco a liberdade de expressão on-line. Você acha que existe legitimidade para esse argumento?

MH: A dignidade humana e o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade devem sempre suplantar a liberdade de expressão. É simplesmente o bem maior. Finalmente, começamos a pôr fim a uma cultura que considera a exploração de pessoas vulneráveis ​​(em grande parte, pessoas racializadas) em nossas comunidades como inevitável, e que tenta (erroneamente) racionalizar a explosão da exploração on-line como benéfica para aqueles que são explorados. Estamos finalmente dizendo que a prostituição, o tráfico e a exploração sexual são prejudiciais, quer ocorram on-line ou off-line.

MM: Qual o papel das empresas do Vale do Silício, como Google, Microsoft e Facebook, em tudo isso?

MH: Embora houvesse, é claro, a oposição de algumas empresas de tecnologia, a Oracle, a IBM, a Hewlett-Packard e o Facebook apoiaram o projeto. Sheryl Sandberg, COO do Facebook, foi muito vocal em seu apoio à legislação nos dias próximos à votação. Para aqueles que se opuseram ao projeto, há um claro incentivo financeiro. Em setembro, o senador Ron Wyden (D-Portland), co-autor da Seção 230 da Lei de Decência da Comunicação em 1996, falou contra a emenda pendente à legislação. Ele argumentou que a Seção 230 promoveu US$ 1 trilhão em atividade econômica e deu uma chance às start-ups no mercado então emergente, permitindo que a liberdade de expressão e a inovação florescessem sem a intervenção do governo. Sempre foi sobre dinheiro e mercado livre.

MM: Por que você acha que essas organizações de liberdade civil e lobistas do trabalho sexual se opõem a essas leis?

MH: Há uma enorme quantidade de pesquisas que mostram que a maioria dos sobreviventes queria sair e que as vítimas que estão atualmente sendo exploradas também querem sair. Argumentar que esse projeto prejudicará os “profissionais do sexo” é ignorar o fato de que a maioria das mulheres e meninas que são vendidas nesses sites não o fazem por opção. Existe uma falta intencional de informações sobre esse fato, no entanto. A ignorância voluntária e a negação plausível são absolutamente um fator aqui. Os sites de compra de sexo destacam a necessidade de abordar as condições que levam as pessoas à prostituição e à exploração sexual em primeiro lugar. Mas é claro que isso também é sobre um motivo de lucro – é sobre a capacidade de lucrar com a prostituição.

As ações imediatas tomadas pelo Craigslist, Reddit, Cityvibe e Erotic Review sobre encerrar os seus anúncios de prostituição nos Estados Unidos refletem o papel dessas empresas na promoção da prostituição e do tráfico sexual. Também demonstra o poder que a SESTA-FOSTA tem para responsabilizá-los legalmente por facilitar essas atividades criminosas.

MM: A hashtag #SobreviventesContraSESTA (#SurvivorsAgainstSESTA) tem sido dominada pela retórica pró-prostituição, incluindo até mesmo da Marcha das Mulheres, que criticou o projeto. Mas é claramente falso dizer que as sobreviventes se opõem ao projeto, já que muitas sobreviventes são a favor dele. Que papel as sobreviventes desempenharam no desenvolvimento e no avanço do SESTA-FOSTA?

MH: #ListenToSurvivors (#OuçamSobreviventes) foi a força motriz por trás da aprovação desta legislação, apoiada por legisladores corajosos, defensores, organizações sem fins lucrativos e a comunidade filantrópica. No final, eles ouviram nossas vozes.

Eles leram nossas cartas e nos deram espaço de fala no Capitólio, incluindo às sobreviventes, como eu, nas reuniões na Câmara e no Senado. Nessas reuniões, falamos nossa verdade, encharcadas de sangue e alimentadas pela dor e pelo propósito coletivo. Eles ouviram as sobreviventes enquanto visitávamos todos os membros do Congresso dos EUA. Eles ouviram as vozes das compradas e vendidas, estupradas, espancadas, sequestradas e assassinadas.

Em setembro, eles ouviram o depoimento de Yvonne Ambrose, que disse:

“Meu nome é Yvonne Ambrose. Eu sou a mãe da falecida Desiree Robinson, e estou pedindo para vocês, o Senado dos Estados Unidos, que mudem a seção 230 e apoiem a legislação bipartidária para Parar a Facilitação dos Traficantes Sexuais. Não só pela minha pequena, mas pela proteção das suas e das outras que virão.”

Desiree teria comemorado seu 18º aniversário no dia 29 de março. Aos 16 anos, ela foi vendida por um traficante online – o marido a estuprou, espancou e cortou sua garganta. Ela foi uma das, pelo menos, 37 crianças e adultas, segundo as estatísticas fornecidas pelo Legal Momentum – um fundo de defesa e educação das mulheres em Nova York – a ter sido assassinada devido a anúncios sexuais colocados online entre 2011 e 2016.

Na terça-feira, Charles McFee se declarou culpado de entregar Desiree a um cafetão (Joseph Hazley) por uma “taxa de revelação” de US$250 em 2016. Desiree foi assassinada menos de um mês depois. Os promotores afirmam que McFee viu Hazley, que também é acusado de traficar e criar um anúncio de sexo online para a Desiree.

MM: O que mais você acha que precisamos fazer, e o que mais você acha que pode e deve ser feito nos EUA, em particular, para combater o tráfico sexual/prostituição e ajudar vítimas/sobreviventes?

MH: O fechamento de sites ou o autopoliciamento ativo (como no caso do Reddit) por meio da alteração de políticas que permitam anúncios de serviços pagos envolvendo contato físico é um grande começo, pois torna mais difícil para os compradores comprar sexo. Muitos vão comprar sexo com menos frequência ou parar completamente, porque comprar sexo não será mais tão simples quanto pedir uma pizza online. Também removerá parte do incentivo ao lucro para os traficantes, eliminando as plataformas públicas de exploração.

A prostituição e todas as formas de tráfico fazem parte do movimento #MeToo. As vozes coletivas desse movimento global devem abraçar a verdade, com base em pesquisas que mostram que a venda de seres humanos é uma prática exploradora, indesejada, violenta e inaceitável que deve ser abolida.

Criminalizar o consumidor (comprador do sexo) – a força motriz desse modelo de negócios explorador – como criminalizamos os traficantes (ou seja, proxenetas) também é algo que precisamos fazer nos EUA para enfrentar esse problema. Também precisamos fornecer serviços de saída robustos para aqueles que vendem sexo e continuar a combater o tráfico sexual corporativo, tanto no nível da rua quanto on-line. Temos absolutamente de normalizar a dignidade e o respeito humanos.

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